por: José Antônio Rosa
fonte:http://www.cruzeirodosul.inf.br/
Começou em 2008 com a proposta de deixar um dos pavilhões da mostra vazio. A ideia era discutir o nada enquanto expressão artística. A estudante Caroline Piveta Mota pixou uma das paredes do tal setor, acabou presa, e colocou novamente em evidência o conflito sobre a liberdade de se manifestar. Quando tudo parecia mais calmo e tranquilo, eis que a Bienal de Arte de São Paulo voltou, em 2010, a ser notícia. Quem acendeu, desta vez, o estopim da polêmica foi o presidente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Luiz Flávio Borges D’Urso ao anunciar que encaminharia ao Ministério Público pedido para a retirada da série “Inimigos”, do artista plástico Gil Vicente.
Os quadros em carvão retratam o autor matando autoridades, entre elas o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o atual, Luiz Inácio Lula da Silva, o Papa, a Rainha da Inglaterra e George W. Bush. Conforme a entidade, as criações fariam apologia ao crime, o que é proibido por lei. Maior até do que o impacto causado pelas imagens foi a reação à iniciativa da OAB. Entidade que tem como uma de suas atribuições lutar pelo respeito às liberdades e aos direitos e garantias individuais, a Ordem diz, agora, que o senso criativo “deve ter limites”.
Até que ponto a tese faz sentido? Uma obra de arte teria como induzir alguém a cometer ação criminosa? A possível retirada das obras implicaria em censura? Para discutir essas e outras questões, o Mais Cruzeiro conversou com artistas e produtores sorocabanos. Ouviu, também, o próprio Gil Vicente que, aliás, doou um de seus quadros para o leilão que
a Associação de Educação Cultura e Arte (AECA), mantenedora do Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba (Macs) realiza no próximo dia 7 de outubro no Ipanema Clube. O quadro, datado de 2008, pintado em nanquim sobre papel, pertence à série “Espelho Meu”.
Foi a presidente da entidade, Cristina Delanhesi, quem lembrou que a confusão estabelecida está bem próxima da realidade local. “Quem acompanha isso tudo pensa que estamos distantes do problema. Gil é uma pessoa que mantém conosco laços de amizade e de profissionalismo. Extremamente amável e sensível, além de muito talentoso”. Cristina não tem dúvidas de que o episódio traz de volta o fantasma da censura. “Honestamente, vejo como uma incoerência a OAB defender a liberdade de imprensa e, ao mesmo tempo, pedir a retirada de uma obra de arte da Bienal. Não faz o menor sentido!”.
A presidente da Associação participou, no final de semana, de uma reunião com curadores e teve a oportunidade de ver os quadros. “Quer me parecer que o foco do debate está equivocado, tanto quanto a leitura de quem vê o trabalho. Ele usou da metáfora. Está claro que não irá matar as personalidades ali retratadas”. Cristina Delanhesi acrescenta que “ a arte não pode ter limite”. “A violência se faz presente de tantas formas no cotidiano. Ela está na novela que passa no horário nobre da televisão, que mostra a desestrutura familiar, na miséria do povo. Eu nunca soube de manifestação da OAB em relação a isso”.
O assunto chegou a ser abordado também em evento realizado na terça-feira no câmpus da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Professor do curso de Mestrado em Comunicação e Arte da Uniso, Osvando Morais, que lá esteve, disse que os participantes do encontro chegaram à conclusão de que os conceitos de acessibilidade às manifestações artísticas e de direito autoral mudaram. “Isso tudo ganhou uma nova dimensão. Não é mais possível pensar que, com os avanços tecnológicos e evolução de comportamento, tenhamos de conviver com a mais pura e deslavada censura. A OAB está equivocada. Nenhuma obra faz apologia ao crime. Se assim fosse, teríamos de não mais exibir filmes de terror”.
A professora Rita de Cássia Lana, da Ufscar, lembrou que esta não foi a primeira vez que se tentou censurar o trabalho de Gil Vicente. “Tivemos um precedente em Campinas. Aconteceu exatamente a mesma coisa. Lamentamos que, em pleno século XXI, tenhamos de conviver com essa situação”. Rita disse, mais, que não é de hoje que a arte vive em meio a turbulências. Já no período do Renascentismo, contou, artistas se sujeitaram a problemas. “Muitos, inclusive, morreram por conta da perseguição da Igreja”.
A artista plástica e professora do curso de Design da Uniso, Lúcia Castanho, chamou de “ridícula” a intervenção da OAB. “Só quem não tem o alcance para entender o que é uma expressão artística de qualidade pode pensar em apologia ao crime. Nossa realidade é muito pior. A liberdade criativa não pode, jamais, ser limitada”. Para o titular da subseção Sorocaba da Ordem, Alexandre Oguzuku, “o Brasil ainda precisa aprender a estabelecer ponderações e a conviver com a liberdade”. “Eu vi as obras, e elas chocam um pouco. Na minha opinião, por ser muito nova, a democracia brasileira deverá, com o tempo, resolver esses problemas de forma mais tranquila. Saberá encontrar o meio termo”. Oguzuku admite que a medida da seccional pode ter sido precipitada. “Talvez não fosse necessário chegar a tanto”. Ele entende que artisticamente não há como um trabalho incitar à violência, por “ser uma representação”.
"A OAB me prestou a melhor assessoria de imprensa que eu jamais poderia esperar"
Voz pausada, jeito sereno, o artista plástico pernambucano Gil Vicente está habituado a enfrentar desafios. Não que procure polemizar sempre, mas seu trabalho, invariavelmente, desperta reações controversas e suscita debates acalorados.
Como agora, com a série Inimigos, que estará exposta na 29ª Bienal de São Paulo. São quadros pintados com carvão que ele produziu já há cinco anos e nos quais colocou-se como algoz de autoridades e líderes políticos.
As imagens que tanto chocaram e fizeram com que a OAB paulista decidisse pedir sua retirada da mostra, representam, metaforicamente, a contrariedade do autor com o estado de coisas que ele tem de conviver.
Para conhecer o trabalho de Gil e outras obras, o público pode visitar a mostra a partir do próximo sábado, e até o dia 12 de dezembro, no pavilhão Cicillio Matarazzo, do Ibirapuera. A entrada é franca e os horários de funcionamento são os seguintes: de 2ª a 4ª feira: das 9h às 19h; 5ª e 6ª feira, das 9h às 22h; sábados e domingos, das 9 às 19h.
Gil conversou com o Mais Cruzeiro e, na entrevista, revelou-se, também, uma pessoa de convicções firmes. Determinado, disse que o episódio o fez concluir que crime maior é votar, e que não poderia contar com uma assessoria de imprensa melhor do que aquela que lhe foi prestada pela Ordem dos Advogados. Confira, aqui, trechos da conversa:
O pedido para retirada das suas obras da Bienal é um ato de censura?
Entendo que sim. Só não se consumou a censura, porque os trabalhos não foram removidos. Mas, sinto no ar, um cheiro de ditadura.
Seu trabalho, a série Inimigos, mereceu várias leituras. Falou-se em apologia ao crime, em desprezo pelo poder constituído. O que você pretendeu, afinal, expressar com os quadros?
Eu quis expressar minha decepção, meu descontentamento com o que hoje assistimos no país. Foi a forma que encontrei de expurgar esse sentimento que não é só meu. Ninguém em sã consciência é capaz de negar que vivemos o pior momento da nossa história. A corrupção está aí para quem quiser comprovar. O que me deixou arrasado foi constatar que do prefeito da menor cidade brasileira ao principal mandatário do país, todos, sem exceção, demonstram conivência com o que se faz de errado. Seja dizendo que não sabia, ou agindo mesmo, ninguém merece a confiança que recebeu do povo. Isso me fez concluir, então, que votar é um ato criminoso. Quando alguém entra numa sessão eleitoral, escolhe alguém para representar, acaba, por extensão, se tornando cúmplice de algo sórdido. Mesmo sem saber, mesmo sem intenção. Não estou, aqui, defendendo o voto nulo, não. Só espero que as pessoas tenham um nível de consciência maior, que possam entender a responsabilidade de uma escolha.
Se você tivesse escolhido personagens anônimos para compor os quadros, a reação teria sido diferente?
Eu não quis e não quero matar ninguém. Só fiz representar um sentimento. Claro, que se os escolhidos fossem outros, a reação também seria diferente. Já li que, se o lugar tivesse sido ocupado por anônimos, minha obra teria retratado um ato de violência.
Uma obra de arte pode induzir alguém a cometer ação criminosa?
Claro que não. A OAB falou em apologia ao crime, o que é um absurdo. Eu vi outro dia um game para crianças que consistia em matar pessoas. No monitor aparecia uma metralhadora e o jogador disparava contra adultos. Depois, lia-se a mensagem: Parabéns, você matou tantos adversários. Ninguém, que eu saiba, disse que isso é apologia ao crime, pediu para que o jogo deixasse de ser vendido.
A exposição está mantida?
Sem dúvida. Eu sei que a Fundação Bienal deverá recorrer, se alguma decisão determinar a retirada das obras. Eu espero, sinceramente, que a OAB permita que a mostra seja visitada, contemplada pelo público. Acho, pessoalmente, que a OAB me prestou a melhor assessoria de imprensa que eu jamais poderia esperar. A medida não foi tomada contra mim, mas contra a Bienal.
2 comentários:
Accho que o artista tem um papel muito importante na expressão do pensamento de uma determinada sociedade em uma determinada época, mas ele deve fazer isso com ética. Sim, sou artista, mas sinceramente eu mesma fiquei chocada com os quadros dos assassinatos. Estamos vivendo sim uma época de muita violência e corrupção, e muitas pessoas desejam fazer o que os quadros mostram, mas eu achei a proposta muito agressiva, mesmo que a intenção do artista seja a reflexão sobre essas ações, considerando-as como violentas, pose sim passar a idéia de que ele as deseja, e incentiva. O mundo precisa de amor, perdão, bons sentimentos. Para mim que já tive uma faca e um revolver apontados para o meu pescoço acho a obra extremamente negativa porque relembra o meu trauma que nenhum psicólogo vai conseguir que eu o esqueça jamais. Busco na arte o belo e não os meus traumas.
censura? sim.
filmes violentos tem censura de idade. novelas também. Jogos violentos estão começando a ser censurados.
por que a obra de arte também não poderia ter um limite de publico alvo? acho q essa é a melhor opção. essas obras querendo ou não representam violencia se observadas "ao pé da letra", não são adequadas para pessoas que ainda não têm maturidade para entender o verdadeiro sentido da obra, para interpretá-la.
ao invés de proibir a exposição, que tal limitar a idade do público? como no cinema?
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